domingo, agosto 26, 2007

O IPCC não é mais aquele

Coluna Ciência em Dia
Marcelo Leite
Folha de S.Paulo - caderno Mais 12 de agosto de 2007

Há quase duas décadas escrevo sobre aquecimento global. Esses anos todos serviram para criar a convicção de que a fonte mais confiável de projeções sobre o problema são os relatórios do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática posto em ação pela ONU em 1988. Talvez seja hora de adicionar um grão de sal a essa convicção.

Quem primeiro alertou para a possibilidade de haver algo questionável no IPCC foi o economista José Eli da Veiga, da USP. Há coisa de seis meses, ouvi dele a intrigante afirmação de que não identificara grandes nomes da economia ambiental entre os autores dos textos do IPCC publicados no com repercussão no começo do ano.

Para quem não está familiarizado com o modo de produção dos relatórios do IPCC, é bom saber que mais de 2.000 pesquisadores de muitos campos e países participam. A cada meia década, revisam toda a literatura científica sobre várias áreas de especialidade. Daí surgem seus cenários sobre aumento de temperatura (pelo menos mais 1,8C até 2100) e elevação do nível do mar (de 18 cm a 59 cm).

Como é mais ou menos óbvio, essas projeções dependem de séries de dados econômicos sobre atividades emissoras de gases do efeito estufa, de energia a transportes e agricultura. Prever quanto, onde e como a economia vai crescer é crucial para predizer o futuro das emissões e, portanto, da temperatura (que se eleva com o acúmulo de gás carbônico na atmosfera).

Pelo menos desde 2003 uma dupla de especialistas -David Henderson (ex-OCDE) e Ian Castles (ex-presidente do Birô de Estatísticas Australiano)- questiona premissas econômicas básicas dos cenários do IPCC. Parece um mero detalhe técnico: o painel usa preços de mercado nas comparações de PIBs nacionais e sua evolução, em lugar de valores expressos no conceito de "paridade de poder de compra" (PPP, na sigla em inglês).

Sem entrar aqui na minúcia econômica, para Henderson e Castles isso leva o IPCC a superestimar a diferença de riqueza entre países pobres e ricos em 1990, ano de referência dos cenários. Em conseqüência, também haveria distorções no crescimento estimado das economias desde então, o que por sua vez tenderia a inflar as emissões de gases-estufa.

Não é uma objeção trivial, longe disso. A dupla acusa o IPCC, porém, de desconsiderá-la sumariamente desde 2003, apesar da receptividade inicial demonstrada por Rajendra Pachauri, que preside o painel. Um apanhado recente da controvérsia (em inglês) se encontra no artigo "Governos e Questões de Mudança Climática", publicado por Henderson na edição de abril-junho do periódico "World Economics".

O autor denuncia ali que nenhum de seus artigos sobre o tema foi incluído entre mais de 400 referências do "Quarto Relatório de Avaliação" lançado neste ano (AR4, como ficou conhecido), embora incluam um comunicado de imprensa em que Pachauri ataca o duo.

Henderson e Castles ponderam que órgãos estatísticos internacionais recomendam o uso da metodologia PPP. Defensores do IPCC retrucam que a mudança não alteraria de modo significativo as projeções físicas (como a temperatura) e que seria ônus dos críticos produzir modelos e estimativas que demonstrem o oposto. O IPCC tem a seu favor o argumento de que muitas medições desde 1990 confirmam as tendências delineadas pelo órgão.

Essa pendenga não se resolverá tão cedo, mas precisa vir a público -para indicar que o IPCC não é bem um evangelho que deve ser seguido por todos cegamente.

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