Por este texto, o jornalista de Veja responde a inquérito policial. É longo, mas vale a pena, pois retrata o nosso "estado de direito" sob o jugo lulo-petista. Sob o stalinismo, a liberdade de imprensa corre sério risco. E nisso não há exagero nem teoria da conspiração.
Nuvens escuras no horizonte
Por Mario Sabino
As relações do governo Lula com a imprensa voltaram a entrar em temperatura crítica. Na segunda-feira da semana passada, munidos da convicção – calculadamente aloprada – de que a vitória nas urnas significou uma absolvição dos crimes de corrupção do PT, militantes do partido, com o duplo crachá de funcionários públicos, agrediram jornalistas à entrada do Palácio da Alvorada. No dia seguinte, a situação adquiriu contornos ainda mais graves: os repórteres de VEJA Julia Duailibi, Camila Pereira e Marcelo Carneiro, responsáveis pela apuração de reportagens que mostraram a participação de policiais federais em atos descritos pela revista como "uma operação abafa" no escândalo da compra do dossiê, foram constrangidos nas dependências da Polícia Federal, em São Paulo, pelo delegado Moysés Eduardo Ferreira. Os repórteres haviam sido convocados para prestar esclarecimentos na condição de testemunhas, mas o delegado, utilizando meios ilegais, tentou transformá-los – e, por extensão, a VEJA – em réus. Como se a revista tivesse "fabricado" as reportagens que revelaram os movimentos de um grupo dentro da PF para apagar, no episódio investigado, as impressões digitais de gente ligada diretamente ao Palácio do Planalto.
Diante da arbitrariedade, VEJA divulgou no mesmo dia uma nota em seu site na qual relatou os abusos cometidos pelo delegado Moysés Eduardo Ferreira (veja a íntegra abaixo). A reação da sociedade foi imediata e vigorosa. Jornais, colunistas, políticos e entidades de classe protestaram contra as intimidações sofridas pelos repórteres da revista, numa demonstração ao mesmo tempo de solidariedade e indignação diante da ameaça, embutida na atitude do delegado da PF, à liberdade de imprensa.
Há duas formas de observar ambas as ocorrências – a dos jornalistas agredidos no Alvorada e a dos repórteres de VEJA constrangidos na PF. Na primeira, a mais benigna, pode-se enxergá-las como atos isolados, resultantes do fanatismo partidário e da vingança corporativa, respectivamente. Nesse caso, basta expressar a indignação e exigir a neutralização dos seus protagonistas, a ser encarados apenas na qualidade de agentes patogênicos que envenenam a democracia e aos quais as instituições dispõem de instrumentos para expurgar. O segundo modo de examinar os acontecimentos, no entanto, comporta a inquietação maior de que eles são fruto de uma ação coordenada do governo do PT para controlar jornais, revistas e emissoras de televisão – e, por meio de tal controle, obstaculizar a missão da imprensa de fiscalizar o poder. Antecedentes existem: em 2004, o governo, com o bem estimável apoio de pelegos sindicais e editores a serviço do PT, tentou criar um certo Conselho Federal de Jornalismo, que, a pretexto de coibir erros, significaria na prática a imposição de censura prévia aos meios de comunicação. Antes disso, o Planalto quis expulsar o correspondente do jornal americano The New York Times Larry Rohter porque ele registrara o gosto do presidente pelo consumo de bebidas alcoólicas – fato, aliás, que o próprio nunca escondeu de ninguém, mas que de repente adquiriu a proporção de um ataque à honra nacional. Também foram recorrentes, ao longo do primeiro mandato de Lula, as diatribes lançadas contra a imprensa pelo próprio e por assessores seus apanhados em gatunagens.
Quando tudo isso, no entanto, parecia pertencer ao passado, eis que as últimas agressões e arbitrariedades contra jornalistas, não bastasse a sua gravidade intrínseca, ganharam uma moldura preocupante. Ao condenar de forma burocrática o espetáculo promovido por militantes do PT em Brasília, o presidente do partido, Marco Aurélio Garcia, aproveitou a oportunidade para sugerir à imprensa que fizesse uma "auto-reflexão" sobre sua atuação na campanha eleitoral. Ele afirmou ainda que os jornalistas deviam uma informação à sociedade: a de que o esquema do mensalão não existiu. Semelhantes disparates enquadram-se na tradição autoritária da esquerda marxista, da qual Garcia é um inebriado seguidor e que tem como uma de suas estratégias recorrer a eufemismos para perpetrar enormidades. Ao falar em "reflexão", ele na verdade quer dizer "genuflexão". Quando afirma, sem enrubescer, que o esquema do valerioduto não existiu, porque disso não há "evidências", o presidente do PT usa da mesma artimanha do camarada Stalin, que por várias vezes "reescreveu" a história da então União Soviética, apagando de textos históricos os relatos de fatos que lhe eram negativos e de fotografias as imagens de opositores políticos. Salvo melhor juízo, a imprensa ideal de Garcia é a cubana, que goza de toda a liberdade para elogiar Fidel Castro. O furo jornalístico mais recente da imprensa cubana se deu quando o comandante saiu da operação de um tumor no intestino. O furo não foi sobre a gravidade da doença. Esqueça. O jornal estampou a manchete "Absolvido pela história", reverberando a frase famosa do ditador dita quando sua revolução começou a matar gente indiscriminadamente e isso chamou a atenção do mundo.
Garcia, segundo um alto integrante da cúpula governamental, não passa de "um ideólogo perigoso que precisa ser afastado dos ouvidos do presidente". Mas, para dissipar receios, seria recomendável que o presidente Lula fosse mais enfático na condenação às tentativas de cerceamento à liberdade de imprensa. No caso dos constrangimentos impostos aos repórteres de VEJA pelo delegado da Polícia Federal, ele não se pronunciou publicamente. Pelo relato estampado no jornal Folha de S.Paulo, limitou-se a dizer a assessores que era um equívoco "vitimizar" setores da imprensa que julga terem sido "injustos" com ele. Ou seja, é lícito supor que, na visão de Lula, se a inquirição dos repórteres não vitimizasse a imprensa independente do governo, estaria tudo certo.
A acirrar as dúvidas sobre a convicção do atual governo em relação à necessidade de uma imprensa livre, um dos pilares do sistema democrático, levem-se em conta, ainda, as afirmações do ex-ministro Ciro Gomes, aliado de Lula, feitas também na semana passada a um jornalista chapa-branca. De acordo com Gomes, "é preciso incentivar dramaticamente os meios de comunicação alternativos, fortalecer cooperativas de jornalistas". A sintonia do ex-ministro com o programa de "democratização da mídia" do PT é comovente. O tal programa sugere a desconcentração da propriedade de emissoras de rádio e televisão. No que se refere à imprensa escrita, seria preciso criar um "programa de incentivos legais e econômicos para o desenvolvimento de jornais e revistas independentes". A verdade é que, por trás de propósitos aparentemente tão nobres, está a aspiração à criação de um kolkhoz jornalístico onde seriam apascentadas dóceis vaquinhas de presépio do governo petista. Por "jornais e revistas independentes", leia-se "publicações submissas ao PT". Quanto à desconcentração da mídia eletrônica – bem, que tal começar pelas emissoras de propriedade dos petistas de ocasião do Norte e do Nordeste?
A liberdade de imprensa tornou ao centro da discussão, o que não é um bom sinal para a democracia brasileira. Menos ainda quando até um chefe de polícia resolve emitir opiniões a respeito, na condição de chefe de polícia. Foi o que se permitiu o diretor-geral da PF, Paulo Lacerda, ao negar os abusos contra os repórteres de VEJA. Ele disse que jornalistas não estão acima da lei. De fato, não estão. Assim como também não estão delegados da PF, Gedimar Passos e Freud Godoy, principais beneficiários da "operação abafa" denunciada por VEJA. É curioso que a Polícia Federal se empenhe tanto nos depoimentos dos jornalistas da revista e seja tão frouxa na investigação desses personagens.
O delegado Moysés Eduardo Ferreira tratou os repórteres de VEJA como suspeitos, não permitiu que eles conversassem com sua advogada e, num ato de flagrante ilegalidade, não deixou que eles saíssem com a cópia de seus depoimentos. A coisa chegou a tal ponto que a procuradora da República Elizabeth Kobayashi, testemunha de tudo, procurou o repórter Marcelo Carneiro e a advogada da Editora Abril, Ana Rita Dutra, antes que eles deixassem as dependências da Polícia Federal. Relata Carneiro: "À nossa saída, já no hall dos elevadores do 9º andar da PF, a procuradora nos abordou e disse: 'Não deixe acontecer no próximo depoimento o que ocorreu hoje aqui. O delegado não podia ter proibido a conversa entre vocês' ". Um dia depois, a procuradora soltou uma nota ambígua, em que, apesar de não desmentir os fatos descritos por VEJA, afirma que, no seu "entendimento pessoal", não havia ocorrido intimidação. Compreende-se o receio de Elizabeth de ter parecido conivente com o delegado Moysés ao não usar de suas prerrogativas institucionais para detê-lo em suas arbitrariedades. Mas, a fim de evitar que nuvens escuras se adensem no horizonte, é preciso que todos se comportem à altura de suas responsabilidades – imprensa, governo, chefes de polícia e procuradores da República.
Um comentário:
Boa, ph!
Essa turma acha mesmo que eleição é absolvição.
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