A matéria abaixo é uma versão estendida da que publiquei no Valor Econômico.
Dois homens são presos sob a acusação de furto. A cada um deles, separadamente, a polícia apresenta a seguinte proposta: Se confessar e o parceiro negar, o delator sai livre e o companheiro fica preso por dez anos — e vice-versa. Se ambos confessarem, pegam cinco anos de cadeia e, se negarem, a pena cai para um ano. Criado pelo professor Albert Tucker, da Universidade Princeton, o Dilema do Prisioneiro é o mais famoso exemplo de uma situação na qual se aplica a teoria dos jogos — uma área multidisciplinar que amealhou o prêmio Nobel deste ano, com os pesquisadores Robert Aumann, da Universidade Hebraica de Jerusalém, e Thomas Schelling, de Harvard.
A teoria dos jogos ganhou as telas dos cinemas em 2001, com o filme Uma Mente Brilhante, baseado no livro homônimo da economista e jornalista alemã radicada nos Estados Unidos Sylvia Nasar. O livro conta a história do matemático americano John Nash Forbes Jr., cuja carreira promissora foi interrompida pelas crises de esquizofrenia, não sem antes deixar contribuições fundamentais para a teoria dos jogos.
O equilíbrio de Nash, por exemplo, explica porque a alternativa mais adequada no Dilema do Prisioneiro é confessar, mesmo que o resultado final não seja o melhor entre os possíveis — cinco anos de prisão. Se ambos negassem, pegariam apenas um ano. Mas se pensassem em ter o melhor resultado, poderiam ter o pior: se um deles negasse o crime e o outro confessasse e delatasse seu companheiro, esse último sairia livre e o primeiro pagaria sozinho com a pena máxima.
Quando muitos já o tinham como morto, Nash ressurgiu em 1994, ao dividir o Nobel de economia com John Harsanyi e Reinhard Selten, o primeiro concedido pelo banco da Suécia à teoria dos jogos.
O brasileiro Newton da Costa, professor de lógica da USP e da UFSC e uma das maiores autoridades do mundo em lógica paraconsistente, analisou o teorema de Nash em um artigo no “Journal of Philosophical Logic”, em 1998, assinado com outros dois pesquisadores brasileiros, Marcelo Tsuji e Francisco Doria. Os três concluíram que, embora haja certamente um ponto de equilíbrio em cada jogo, não há um “processo efetivo” para calculá-lo que sirva para todas as situações. Seria impossível, por exemplo, a criação de um programa de computador que servisse para calcular o ponto de equilíbrio de todos os jogos, assim como não há um anti-vírus que sirva para todos os tipos de pragas virtuais.
A solução terá que ser encontrada caso a caso. Para o professor, isso está longe de comprometer a eficácia e a credibilidade da teoria. Pelo contrário, ele diz que só a torna “ainda mais bonita”, já que os pesquisadores precisam entrar com suas capacidades de resolver os problemas separadamente.
Mas a teoria dos jogos não começou com Nash. Sua aplicação à economia começou com o livro “Theory of Games and Economic Behavior” (TGEB), do matemático húngaro John von Neumann e do economista alemão Oskar Morgenstern, ambos professores da Universidade Princeton, em 1944. O aparato matemático foi providenciado por von Neumann, que já publicara um artigo no qual desenvolvera o teorema fundamental da teoria dos jogos, o minimax — segundo o qual sempre há uma solução racional para uma situação de conflito entre dois indivíduos com interesses completamente antagônicos. São os chamados jogos de soma zero, em que o ganho de um jogador é igual à perda do outro. Nesses casos, haveria “estratégias ótimas” para ambos jogadores, limitando os ganhos e os prejuízos. Isso valeria tanto para pessoas quanto para empresas, genes, nações, etc.
Sylvia Nasar define von Neumann como um verdadeiro polímata. Discípulo do matemático alemão David Hilbert, além da teoria dos jogos, ele se dedicou à formalização da teoria dos conjuntos e da mecânica quântica. Participou do Projeto Manhattan e era uma das exceções às severas regras de segurança: não viveu confinado em Los Alamos; entrava e saía de lá quando bem entendesse. Por muito tempo, assessorou o governo americano durante a Guerra Fria. Já de cama por causa do câncer que o mataria em 1957, ele ainda recebia visitas dos membros do governo americano. Dizem até que Stanley Kubrick teria espelhado nele o personagem “Doutor Fantástico”. Mas o feito que o tornou famoso foi o desenvolvimento do primeiro computador eletrônico. Como consultor da IBM, von Neumann participou de várias etapas da concepção e construção do computador eletrônico: a substituição dos modelos de circuitos por programas gravados, máquinas digitais no lugar de analógicas e o padrão de dígitos binários em vez do decimal. Como comenta Arno Penzias, “no mundo de hoje, a mesma palavra 'computador' se refere a uma versão da máquina inventada por John von Neumann nos anos 40”.
Assim como o programa de pesquisa de Hilbert pretendia axiomatizar a teoria dos conjuntos, a teoria dos jogos seria uma tentativa de estabelecer os axiomas da teoria econômica. E, para von Neumann e Morgenstern, o fundamento seria o comportamento das pessoas. Em vez de procurar estabelecer sistemas universais que tudo explicassem, sugeriram que os economistas deveriam, primeiro, trabalhar em âmbito microeconômico para resolver “problemas individuais”, como já faziam os físicos.
O problema “maduro” a que se propuseram resolver em TGEB é o “comportamento racional”, pelo qual os agentes econômicos procurariam maximizar a utilidade de suas decisões — conceito desenvolvido pelos marginalistas do século XIX. Isso suscitaria a discussão se a teoria dos jogos é parte da teoria neoclássica ou se constitui um ramo independente.
A resposta não é óbvia. Autor do primeiro livro-texto sobre teoria dos jogos do Brasil, o professor Ronaldo Fiani, da UFRJ, diz que pode ser “sim e não”. Se, por um lado, a TJ parte do axioma de que os agentes continuam decidindo racionalmente, e usa todo o arcabouço de racionalização matemática, por outro, os resultados dessas decisões podem não ser exatamente aqueles preditos pela teoria neoclássica.
No artigo “Dois Métodos da Teoria Econômica”, o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira destaca a inversão dos papéis entre a teoria dos jogos e a doutrina neoclássica. “A teoria dos jogos é uma teoria da decisão em regime de incerteza e, na teoria neoclássica pura, não há espaço para a decisão: os agentes sempre maximizam, sempre escolhem a alternativa ótima. Com a adoção da teoria dos jogos , a teoria do equilíbrio geral estaria perdendo o seu estatuto de sistema geral para o entendimento de um sistema econômico substantivo de mercado para se constituir em parte de uma teoria da decisão. Seu ato fundador deixariam de ser os trabalhos de Walras, Jevons e Menger para serem o de Von Neumann e Morgenstern.”
O professor Ubiratan D’Ambrósio, da PUC-SP, lembra que a teoria dos jogos era considerada uma coisa menor, no departamento de matemática de Princeton, na década de 50, quando esteve por lá. Ao contrário de von Neumann, a maioria dos matemáticos da época não dava muita importância à matemática aplicada, quando a moda ainda era a topologia.
Em economia, a teoria dos jogos só começou a ganhar importância e espaço nos livros-texto no final da década de 70 e começo da de 80. No Brasil, ainda é mais ensinada em cursos de pós-graduação. Professor da disciplina no curso de doutorado em Economia da FGV, Sérgio Werlang diz que metade dos modelos existentes hoje em dia em economia é baseada em teoria dos jogos, e a outra, na teoria neoclássica do equilíbrio geral.
O professor de economia do Massachussets Institute of Tecnology (MIT) Muhamet Yildiz confirma que a teoria dos jogos ocupa hoje o papel que já foi da teoria dos preços ou da teoria do equilíbrio geral há algumas décadas. “Por isso, não é surpresa alguma ter havido dois prêmios Nobel em teoria dos jogos.”
Hoje, sua aplicação se estende a áreas antes inimagináveis, como a biologia e até mesmo jornalismo. No Brasil, já há pesquisadores na área, como Werlang, a professora Marilda Sotomayor (USP) e o professor Hélio Schuch (UFSC), entre outros. Schuch usa a teoria dos jogos para analisar a tomada de decisões no mercado jornalístico e Sotomayor é especialista em leilões.
Mas o uso da teoria dos jogos está longe do consenso. O articulista da revista “Business Week” Michael Mandel avalia, por exemplo, que ela falha no principal teste de uma teoria científica: a capacidade de fazer previsões que possam ser testadas empiricamente. Segundo ele, na vida real, resultados completamente opostos em uma determinada situação seriam consistentes com a versão de racionalidade da teoria dos jogos. Um exemplo: se a crise dos mísseis em Cuba, em 1962, tivesse acabado em guerra entre Estados Unidos e União Soviética, os teóricos dos jogos diriam que aquele seria um resultado tão “racional” quanto o que realmente aconteceu. Ou seja, tanto o conflito quanto a cooperação seriam, ao mesmo tempo, consistentes com a teoria.
Mas o comitê do Nobel parece não ter dado a mínima para as objeções ao premiar Thomas Schelling e Robert Aumann. Eles têm perfis distintos. Modesto, Schelling se diz apenas um “usuário” da teoria. Autor do primeiro livro-texto do Brasil sobre teoria dos jogos, o professor Ronaldo Fiani, da UFRJ, diz que Schelling é mais “intuitivo e não preocupado com formalizações matemáticas”.
Um de seus mais conhecidos trabalhos é o livro “A Estratégia do Conflito”, em que analisa a corrida nuclear entre as duas super-potências durante a Guerra Fria sob o ponto de vista de um jogo. Também importante é o conceito de “ponto focal”. Para ilustrar a idéia, Schelling criou o exemplo dos dois paraquedistas. Eles saltam, separadamente, em uma missão de sabotagem sobre uma cidadezinha, mas esquecem de combinar onde vão se encontrar. Em terra, notam que a cidade tem cinco casas, uma igreja e duas praças. A pergunta de Schelling é: onde eles vão escolher se encontrar? Na igreja. Ou seja, algumas soluções são mais prováveis porque os jogadores acreditam que os outros também as escolherão.
Robert Aumann esteve por aqui em 2002, participando de um seminário patrocinado pela Game Theory Society, da qual era presidente. A professora Ana Maria Bianchi, da FEA-USP, lembra da palestra e de seu estilo altamente didático. Dispensou os recursos audiovisuais disponíveis e pediu um singelo quadro negro. “Tiveram que sair procurando porque era a única coisa que não havia lá”, conta Bianchi.
Aumann é um legítimo teórico dos jogos. Esteve no Brasil, em 2002, participando de um seminário patrocinado pela Game Theory Society. O reconhecimento do Nobel veio pelo conjunto da obra do israelense, da qual se pode destacar o trabalho sobre os chamados “jogos repetidos”. Quando duas empresas formam um cartel, por exemplo, aquela que desrespeitar o acordo primeiro, alterando a política de preços, acaba vendendo mais e ganhando no curto prazo. Mas Aumann demonstrou que, se a situação (jogo) se repetir, elas tenderão a cooperar, desde que o horizonte seja indefinido, ou seja, não haja uma data certa para o cartel acabar. Fiani explica que, da mesma forma, os assaltantes do Dilema do Prisioneiro também tenderiam à cooperar se o jogo fosse repetido, desde que não soubessem qual seria a última jogada.
7 comentários:
Beleza, PH!
É uma ótima introdução a essa teoria que poucos conhecem. O texto está claro e objetivo.
Abs., Tambosi
Valeu, professor. obrigadão pela força.
abraço
O tema me parece fascinante, PH. Vou tentar ler mais sobre o assunto. Pena que a História (área que estudo atualmente) anda tão avessa à matemática e o meu cérebro não funciona tão bem quanto o seu.
Um pequeno detalhe me chamou particularmente a atenção, quase no fim do texto. A cena em que Aumann pede um quadro negro. Nossas universidades não formam mais professores assim.
Engana-te, meu amigo. Meu cérebro é limitadíssimo :) só tenho é curiosidade por aquilo que não conheço. E como você mesmo disse, o assunto é fascinante.
abração
cara, vou pegar esse filme de novo.
Parabens.
Estou Teoria dos Jogos e achei o texto muito bem escrito e resumido.
Abracos
fernando@barrichelo.com.br
www.teoriadosjogos.net
Prezado Professor,
afinal, quem comprovou primeiramente definitivamente o equilíbrio geral microeconômico, John Nash, com a teoria dos jogos, ou Gerard Debreu, com a matemática topológica. Ou as hipóteses para o equilíbrio geral são diferentes?
Obrigado,
Antônio
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