A seguir, uma entrevista que fiz com a professora Marilda Sotomayor, da FEA-USP, e que não pude aproveitar para a matéria que publiquei no Valor - por causa do deadline. Uma das maiores autoridades em teoria dos jogos do país, a professora resumiu em um único texto as sete perguntas abaixo.
1. Qual o papel da teoria dos jogos na teoria econômica atual?
2. A teoria dos jogos está cada vez mais presente nos livros-texto de microeconomia. Ela é parte da teoria neoclássica? O conceito de> racionalidade dos agentes é a mesma nas duas teorias?
3. Como a senhora analisa os dois prêmios Nobel dados à teoria dos jogos? Quero dizer, quais as características dos laureados deste ano e quais as dos vencedores em 1994?
4. No livro Theory of Games and Economic Behavior, von Neumann e Morgenstern argumentavam que a economia precisava ganhar estatus de ciência, como a física - o grande paradigma para eles. A senhora acha que a teoria dos> jogos foi uma tentativa de axiomatização da economia, uma forma de trazer a uma "ciência social" os padrões epistemológicos das chamadas "ciências duras"?
5. O comitê que define os vencedores do prêmio do Banco da Suécia também premiou, em 2002, pesquisadores (Kahnemann e Tversky) cujas pesquisas de economia aplicada, de alguma forma, contrariavam os conceitos da teoria dos jogos sobre o comportamento das pessoas. O que a senhora pensa disso?
6. Como está o ensino de teoria dos jogos no Brasil? As escolas estão atualizadas?
7. Alguns economistas considerados não-ortodoxos questionam o uso de teoria dos jogos como sendo mais uma das tentativas de matematizar uma realidade muito mais complexa, incapaz de caber nos modelos matemáticos. Qual a sua opinião?
Resposta.
Sem ir a fundo no que voce quer saber, o que posso lhe dizer é que Teoria dos Jogos tem representado um papel fundamental na Teoria Econômica. Robert Aumann costuma dizer nas suas conferências que a maior aplicação de Teoria dos Jogos à Economia é em Jogos Cooperativos, contrariamente à opinião de muitos economistas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, há uma central que usa um algoritmo para distribuir os médicos que terminam as Escolas de Medicina pelos hospitais onde devem fazer um ano de residência. Esse mecanismo, chamado National Residence Matching Program (NRMP), existe desde de 1951, com participação voluntária de 90% dos médicos e hospitais. Mas antes disso, o mecanismo era descentralizado, com os hospitais fazendo ofertas aos candidatos por telefone, um procedimento parecido ao que acontece hoje no Brasil com omercado de admissão dos estudantes de economia aos cursos de pós-graduação da ANPEC.
Esse procedimento tinha regras que mudavam praticamente a cada dois anos, pois não conseguiam chegar a uma alocação dos médicos aos hospitais que fosse satisfatória para todos os participantes. Quase sempre sobravam vagas em hospitais bem conceituados, e médicos com bons currículos ficavam sem poder fazer a residência. Este processo de ensaio e erro perdurou por 50 anos.
A explicação do insucesso do procedimento antes de 1951 e do sucesso do mecanismo atual, que já dura mais de 50 anos sem sofrer alteração, é dada através da teoria dos jogos cooperativa. De fato, a teoria dos jogos prega que o conceito de equilíbrio cooperativo em jogos em que a principal atividade dos jogadores é a formação de coalizões (grupos de jogadores) é dado pelo conceito de núcleo. Neste mercado, uma alocação em que existem um hospital e um candidato tais que o hospital prefere o médico a algum daqueles alocados a ele e o candidato prefere o hospital àquele para o qual foi alocado, não está no núcleo do jogo. Num artigo meu com David Gale, de 1985, é provado que a alocação produzida pelo algoritmo usado pelo NRMP está no núcleo do jogo cooperativo e que as falhas na organização do mercado antes de 1951 levavam a alocações fora do núcleo. Assim, a alocação produzida antes de 1951 não era um equilíbrio cooperativo, enquanto que a produzida pelo algoritmo o é. É, portanto, a constatação na prática da teoria, num experimento natural de organização de mercado!
Este fato tem sido citado por Aumann frequentemente. É claro que os modelos teóricos do jogo, como todo modelo matemático, não podem retratar fielmente a realidade e nem se propõem a isso. No entanto, eles têm um compromisso com a realidade e através deles muitos mercados têm sido estudados e melhor compreendidos, o que têm ajudado as instituições criadas para organizar tais mercados.
Veja o que aconteceu, por exemplo, com os modelos de jogos de matching de dois lados ao longo dos últimos vinte anos. Esses jogos que modelam mercados de trabalho em nível de entrada, mercados de compra e venda, mercados de admissão de candidatos à instituições, leilões, etc, deixaram de ser apenas modelos de matemática pura para tornarem-se parte importante do campo emergente de Desenho de Mercados.
Com raras exceções, os mais renomados teóricos do jogo são matemáticos, comoAumann, Nash, David Gale, Shapley, Sergiu Hart, Hervé Moulin, etc. Os melhores centros de Teoria dos Jogos pertencem a Departamentos de Matemática, como em Israel e Rússia. No Brasil, todos os cursos de jogos são oferecidos por departamentos de Economia e o ensino dessa disciplina ainda deixa muito a desejar. Além de não ser ensinada em muitas universidades brasileiras, a USP/SP é, até que eu saiba, a única que oferece jogos cooperativos a alunos de graduação e pós-graduação. No congresso internacional que organizei na USP, em 2002, Aumann ministrou um mini curso de jogos cooperativos. Tivemos 70 alunos brasileiros, vindos das mais diversas universidades brasileiras, comoPUC/RJ, FGV/RJ, UFRJ, Unicamp, UnB, etc. Tenho defendido que o ensino de teoria dos jogos deveria ser feito nas escolas secundárias brasileiras. Meus alunos sempre me dizem, quando o meu curso de jogos na USP termina, que estão deixando o curso com "a cabeça diferente". O ponto é que ensinamos matemática às crianças com o intuito de ensiná-las a pensar. No entanto, elas têm dificuldades com os números e assim nem sempre conseguimos alcançar nosso objetivo. Com a teoria dos jogos nao precisamos dos numeros...
Quanto ao Nobel, era esperado há bastante tempo que Aumann o ganhasse um dia. Só que dividido com Lloid Shapley, com quem, inclusive, Aumann fez diversos trabalhos importantes. Costumava-se dizer: "Aumann é o papa da Teoria dos Jogos, mas Shapley é o deus!"
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